A CCBJ envia regularmente boletim eletrônico aos associados. Na edição de janeiro, o artigo foi escrito pelo advogado Masato Ninomiya. Ele é sócio fundador da entidade.
Ninomiya escreveu sobre a história da família que partiu do Japão para o Brasil. Ele e alguns membros da família tiveram a oportunidade de estudar no Japão com bolsa concedida pelo governo japonês.
Ninomiya também faz uma análise sobre as recentes mudanças econômicas no Brasil.
REMINISCÊNCIAS SOBRE A ECONOMIA BRASILEIRA NAS ÚLTIMAS DÉCADAS
Masato Ninomiya
Sócio fundador da CCBJ
Dia 16 de janeiro é uma data inesquecível para minha família, pois chegamos no porto de Santos exatamente nesta data, no ano de 1954, a bordo do vapor America Maru, quando dali a alguns dias a cidade de São Paulo completaria 400 anos desde sua fundação. Viemos para o Brasil a convite dos meus tios que chegaram em 1927 e tinham uma pequena fábrica de escovas nas imediações da Praça da Árvore. Eles visitaram o Japão logo após a celebração do Tratado de Paz de São Francisco e viram o país devastado meio a escombros e cinzas resultantes da guerra. Disseram a meus pais que não haveria futuro no Japão e que possibilidades de sucesso estaria no Brasil. Meu pai faleceu em 1989 e a minha mãe em 2006 e ouvimos, eu e meus irmãos nascidos no Brasil, as suas lamentações durante toda vida, pois o Japão progredia a olhos vistos enquanto que o mesmo não ocorria por aqui.
Eu e meus irmãos, contudo, não comungamos das mesmas ideias dos nossos pais, pois o Brasil nos deu oportunidades para crescer. Fomos educados nas escolas públicas ou através de bolsas de estudo e conseguimos concluir cada um, o curso superior. Não sabemos se o mesmo teria acontecido no Japão, pois sabemos que a competição era acirrada nas gerações nascidas no chamado baby boom, nos dez anos seguintes ao término da guerra. Os nossos pais não enriqueceram como prometeram meus tios, mas podemos dizer que tivemos uma vida razoável, onde pudemos estudar e trabalhar com saúde até os dias atuais e eles conseguiram atingir a idade média dos japoneses de sua geração.
Após a formatura, foi a vez de estudarmos no Japão, sonho acalentado desde a infância, graças a bolsas de estudo do Ministério da Educação, hoje denominado de MEXT. Eu recebi a bolsa por 6 anos e meio, a minha esposa Sonia, por 10 anos, o meu irmão Jorge por 3 anos e a minha irmã Rumi, por 7 anos. E recentemente, o meu filho Masayoshi, por 3 anos. Eu recebi o título de Doutor em Direito e os demais o de Mestre, cada um nas suas respectivas áreas. Foram ao todo, quase 30 anos de bolsas de estudo. A obtenção do título de Doutora em Linguística pela Sonia ocorreu mais tarde, quando refez o curso de doutorado na PUC de São Paulo. O atraso se deveu a suas obrigações acadêmicas e administrativas na UFRJ e também na criação dos três filhos, mas a obtenção do título era também o desejo de muitos anos.
Pensei, então, em retribuir de alguma forma, os benefícios recebidos. Passei a receber, a partir de 1985 até 2005, os estagiários japoneses da Associação de Intercâmbio Japão–Brasil, pagando-lhes as bolsas para estudo e estágio no Brasil, num total de 30 estudantes. Creio que consegui retribuir, ainda que parcialmente, os benefícios que a minha família recebeu do governo japonês. Três dos meus ex-estagiários obtiveram os títulos de Doutor e lecionam nas universidades do Japão e do Brasil. Outros labutam em diversos segmentos, sempre em prol do intercâmbio entre os dois países.
Em 8 de outubro de 2021, completei 50 anos da minha chegada ao Japão com a bolsa de estudos. Havia voltado ao país após 18 anos de permanência no Brasil. Sabia falar e ler a língua, mas confesso que a minha escrita era bastante precária, apesar de ter estudado nas escolas da comunidade japonesa e mesmo no curso de japonês da USP. Se não fosse a aprendizagem no Japão, escrevendo relatórios de pesquisa e a dissertação de mestrado, bem como a tese de doutorado, ideograma por ideograma, não teria chegado ao conhecimento de hoje. Devo lembrar que o processador de texto e o computador personalizado surgiram na segunda metade dos anos 70, mas eram muito caros e de difícil acesso para um estudante.
Por falar em anos 70, pude assistir ao progresso vertiginoso do Brasil que crescia a 10% por ano, estando no Japão. O Primeiro–Ministro, Kakuei Tanaka,esteve no país em 1974 e devido ao embargo de soja dos Estados Unidos para o Japão, ele viu no Brasil, a possibilidade de transformá-lo num celeiro para o mundo, e em especial para o Japão. Foi ele mesmo quem reatou as relações diplomáticas com a China, mas jamais pôde imaginar que um dia o Japão dependeria deste país em matéria de produção de alimentos. A visita do Tanaka resultou no PRODECER, Programa de Desenvolvimento do Cerrado, que começou com a experiência piloto de 50.000 hectares. Todos sabem o sucesso deste empreendimento, pois o Brasil vem disputando há anos, com os Estados Unidos, o primeiro lugar na produção mundial de soja. Não se deve esquecer que muitos eram contrários ao projeto no Brasil, principalmente entre os simpatizantes do hoje MST, que entendiam que o Japão invadiria o Cerrado, expulsaria os pequenos produtores para implantar a agricultura capitalista e emigrar 10 milhões de japoneses para o local. Tratava-se hoje, do que se chama de fake news, pois sabia que a estatística da emigração japonesa para o Brasil era de dois dígitos, e quando muito, algumas centenas por ano. O último navio de emigração, o Nippon Maru, havia zarpado de Yokohama com menos de 300 passageiros em 1973 e então, os demais passaram a viajar via aérea, despachando os seus pertences de navio. Como poderiam os japoneses que experimentavam o progresso continuado de sua economia, deixar o país para lutar no desbravamento de terra, como fizeram os pioneiros nos primeiros 60 anos da imigração?
O governo japonês anunciou o fim da política oficial de emigração em 1994, quando já havia iniciado o fenômeno inverso, o chamado decasségui, que até hoje continua. Apenas para mencionar os números, são cerca de 250.000 imigrantes que foram para o Brasil, hoje constituindo uma comunidade até sexta geração, de cerca de 2 milhões de pessoas entre japoneses e brasileiros, na sua maioria, muitos como resultado de integração étnico-racial, algo questionado no período anterior a Segunda Guerra Mundial. Trata-se da maior comunidade de descendentes fora do Japão. Por outro lado, o número de brasileiros no Japão é a quinta entre os demais países e é a terceira maior comunidade brasileira fora do Brasil.
Assim sendo, não podemos nos olvidar do forte laço humano que une os dois países, mencionados com frequência entre as autoridades de ambos os países nas suas visitas recíprocas. Houve diversos políticos que chegaram a afirmar que os nikkeis eram um “tesouro” para a diplomacia japonesa. Porém, nem sempre verificamos reciprocidade de tratamento, uma vez que os descendentes que têm permissão para vir ao Japão são os de segunda e terceira gerações e neste momento, está em andamento, uma campanha na comunidade nipo-brasileira para que os benefícios de visto de Residente por Longo Período sejam estendidos aos de quarta geração. O objetivo ainda está muito longe de ser alcançado. Houve uma pequena abertura, sim, mas para possibilidade de entrada de 3.000 yonseis por ano, mas houve apenas 141 casos autorizados nos últimos 4 anos. Esperamos que o governo japonês faça uma flexibilização nas exigências para os vistos de yonseis, como a idade limite, possibilidade de se acompanhar de seus familiares, condições para se tornar fiadores, etc.
No início de 2019, o governo brasileiro dispensou o visto para os japoneses que vem ao Brasil na condição de turistas para permanência inicial de 3 meses, com possibilidade de extensão por outros 3 meses. A medida facilitou muito a vinda dos japoneses, não só de turistas como também de empresários, mas deve-se admitir que o fluxo não foi intenso devido ao COVID 19 que assolou e continua a assolar o mundo. De toda forma, repetidas gestões têm sido feitas por parte das autoridades brasileiras e também da comunidade nipo-brasileira para o governo japonês, inclusive durante a recente visita do Chanceler Yoshimasa Hayashi ao Brasil no dia 8 de janeiro p.p.
Voltando o assunto para a economia, assisti de perto a renegociação da dívida externa brasileira que começou com a declaração de insolvência do México na histórica Reunião Anual do Fundo Monetário Internacional ocorrida em Toronto, em setembro de 1982. As autoridades brasileiras declararam, ato contínuo, a possibilidade de honrar os seus compromissos, desde que pudessem continuar a tomar empréstimos para saldar as dívidas, como vinha ocorrendo até então, mas de nada adiantou. Este foi o início da renegociação da dívida externa que durou mais de 10 anos, aliada a inflação galopante que chegou a 2.500 % anuais. A negociação da dívida externa com os bancos privados ocorreu em numerosas reuniões em Nova York e com os governos credores no Clube de Paris, numa sala cedida pelo Ministério da Fazenda da França. Afinal, a dívida de US$ 120 bilhões foi reescalonada em 30 anos, com acréscimo de juros e também de spread, uma espécie de taxa de risco para eventual default. O Brasil já praticamente saldou a totalidade do valor renegociado e a exportação brasileira permitiu o acúmulo de cerca de US$ 350 bilhões em reserva cambial, algo inimaginável na década de 1990.
Participei como intérprete, de algumas missões que foram para o Japão até agosto de 1983, e então, continuei a acompanhar o desenrolar dos acontecimentos, estando no Brasil. De acordo com o art. 8 do Acordo de FMI, o país devedor deve abrir as contas pública e submetê-las a missões de avaliação enviadas pelo FMI que passa a dar receitas para reestruturação econômica, em troca de créditos suplementares que dão credibilidade aos bancos oficiais e privados para continuar concedendo as linhas de crédito. Estas receitas de fato eram amargas e se não pudessem cumpri-las, então o governo devia pedir “desculpas” num ofício denominado Carta de Waiver. Lembro-me que o Brasil de fato escreveu diversas cartas, pois a reestruturação não era nada fácil. O Professor Delfim Netto, então Ministro da Fazenda, dizia que assinaria tantas cartas quantas fossem necessárias, pois não passava de uma simples folha de papel. A oposição ao governo saia às ruas com os slogans “Fora FMI” e alegavam que as dívidas já estavam saldadas com tantos juros e spreads pagos até então. Eram gestos de políticos que queriam tirar proveito da situação e de pessoas que nada entendiam de Direito Internacional e regras do mercado de capitais e de finanças internacionais.
O Plano Real do então Ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso trouxe finalmente a calmaria na inflação, após o último choque heterodoxo que igualou a moeda vigente em relação ao dólar americano em 1 para 2700. Foram até então, 4 choques heterodoxos, cortando 3 zeros em cada choque. Não sou especialista no assunto, mas imaginem 12 zeros cortados: 1.000.000.000.000. E além disso, outros 2.700 do Plano Real. Estas são as rápidas impressões de um leigo que experimentou a inflação desde 1954, embora a criação da moeda CRUZEIRO vigente à época datava de1942.
Falemos agora da atualidade. O novo governo assumiu em 1º de janeiro e a nova equipe está apenas nomeada e empossada. Quando o Chanceler japonês chegava em Brasília no dia 8 de janeiro, aconteceu a vergonhosa depredação dos prédios na Praça dos Três Poderes, fato inédito em 200 anos de independência e 134 anos da República. Espera-se que os fatos sejam cabalmente elucidados e que não só os que foram presos em flagrante, como também os seus financiadores e mentores sejam criminalmente responsabilizados pelo que fizeram.
Não se tem ideia, ainda, de como as medidas econômicas surtirão os efeitos desejados. Há necessidade de aguardar pelo menos os 100 dias iniciais do governo. O que se preocupa é o cumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal, cujo teto está sendo modificado através de PEC. Qualquer governo que assumisse teria que apelar para esta medida, uma vez que os recursos seriam necessários para o Auxílio Brasil ou Bolsa Família, independente da sua denominação. Fico preocupado, pois durante o governo militar e até a promulgação desta Lei, os governos gastavam o quanto queriam, utilizando o que se chamava de Conta Movimento, onde todas as despesas realizadas fora do orçamento eram debitadas no Banco do Brasil, o mesmo ocorrendo com os governos estaduais com seus respectivos bancos, causando o descontrole de gastos que desaguavam em inflação.
Há necessidade de aumentar a arrecadação, mas por outro lado, o novo governo continuou a assinar a desoneração de impostos sobre os combustíveis para segurar a inflação que registrou o índice de mais de 27% durante o governo anterior. Todos sentem que as contas diárias de feiras, sacolões e supermercados estão atingindo níveis insuportáveis e ouve-se a reclamação do povo em todos os quadrantes do país. O que se pergunta é se o povo suportaria ainda um outro aumento de impostos em níveis federais, estaduais e municipais. A solução seria a taxação de grandes fortunas, das empresas, fazendeiros, etc., mas sabe-se perfeitamente que a solução é como aprovar tais projetos no Congresso Nacional, onde ainda a oposição e o chamado Centrão possui muita força para reprovar os projetos que não lhes interessa.
O novo presidente da República declarou na sua posse a promessa de que o Brasil deixaria de ser um país exportador de produtos de base, como o minério de ferro, grãos, suco de laranja, carne de frango, etc., para se tornar um exportador de produtos industrializados, como automóveis, aviões, equipamentos industriais, e outros. Ouvi este discurso muitas vezes desde Juscelino Kubitschek que trouxe as indústrias siderúrgica, automobilística, naval e outros para o país. Por maior que seja a crítica, Fernando Collor de Mello abriu as possibilidades de importação com a finalidade de incrementar a exportação e trouxe ainda, a modernização do parque industrial automobilístico, chamando de “carroças”, os automóveis produzidos até então no país.
Aguardemos para ver os resultados da promessa do novo governo. Pelas palavras do novo presidente, podemos supor que a tendencia é mais estatizante do que de privatizações, mas a economia brasileira está bastante amadurecida para que os seus rumos possam trazer mudanças radicais. É ainda, digno de nota, duplicação do número de ministérios que chegou a 37, com ênfase nos direitos humanos, principalmente das minorias, a presença de mulheres em número inédito nos cargos de primeiro e segundo escalão, ainda que o nome de uma delas tenha causado certo constrangimento pelos seus feitos no passado.