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Na edição de novembro, o artigo foi escrito renomado advogado Masato Ninomiya (foto). Ele analisou a trajetória de Thomas Wasaburo Otake, considerado o primeiro brasileiro nikkey.
THOMAS WASABURO OTAKE (1872-1944), O PRIMEIRO BRASILEIRO NIKKEI
Por Masato Ninomiya
Advogado, tradutor público juramentado e professor doutor na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
Nascido em Tóquio nos primeiros anos da era Meiji (1868-1912), Otake foi o primeiro japonês a viver no Brasil, embora alguns patrícios tivessem tido oportunidade de conhecer o país antes dele, embora sempre na qualidade de viajantes. Otake foi recrutado, aos 17 anos, como um dos intérpretes de língua inglesa para servir aos oficiais da belonave brasileira Almirante Barroso, que havia atracado em Yokohama em julho de 1889, no curso de sua viagem de circunavegação. Teria conhecido o Príncipe Dom Augusto Leopoldo, neto de D. Pedro II, que estava a bordo como oficial com a patente de Segundo Tenente, e que o teria convidado a viajar na belonave para conhecer o Brasil.
Embarcou apressadamente, sem ao menos ter consigo o passaporte, documento indispensável para viagens internacionais, fato que anos após, teria suscitado desconfiança das autoridades quando regressou ao Japão, se não teria viajado clandestinamente para o Brasil a fim de fugir do serviço militar. Curiosamente, seu nome nem sequer é mencionado no Diário de Bordo do Almirante Barroso, embora seu comandante, o Capitão de Mar e Guerra Custódio José de Mello, mais tarde promovido a Contra-Almirante e ocupando o posto de Ministro da Marinha nos primeiros anos da República, tivesse a obrigação de registrar todos os acontecimentos a bordo.
A viagem durou cerca de um ano e o Almirante Barroso chegou no porto do Rio de Janeiro em 29 de julho de 1890. Quando a belonave se encontrava em águas internacionais, entre Batavia (hoje Jakarta) e Atjeh (também na hoje Indonésia), chegou a notícia da Proclamação da República, o que obrigou o desembarque de Dom Augusto Leopoldo no próximo porto, o de Colombo, no Ceylon (hoje Sri Lanka), de onde seguiu o caminho do exílio para Europa, a exemplo dos demais membros de sua família que estavam no Brasil. Otake seguiu sua viagem rumo ao Brasil, com a permissão do Comandante Custódio de Mello.
A partir da chegada de Otake no Brasil, há muitos fatos a serem esclarecidos sobre os anos que aqui viveu, mas segundo um diploma emitido pelo Arsenal da Marinha, com data de 24 de abril de 1893, ele teria concluído naquela instituição, o curso de Maquinista de Quarta Classe. Durante muitos anos acreditou-se que Otake tivesse estudado e se formado na Academia Naval (hoje Escola Naval), instituição de ensino da Marinha de Guerra para formação de oficiais. Esta informação está contida em algumas publicações da colônia japonesa no Brasil e é repetidamente citadas em demais obras, e mesmo nas exibições do Museu Histórico da Imigração Japonesa no Brasil.
Sempre houve dúvidas de como um jovem de 18 anos, recém chegado do Japão, ainda que tivesse viajado durante um ano numa belonave brasileira, dispusesse de conhecimento suficiente, tanto de língua portuguesa, quanto de outras matéria que eram exigidas nos exames vestibulares daquela tradicional instituição da Marinha de Guerra, cujo ingresso foi desde sempre muito disputado. Fala-se que teria contado com o apadrinhamento do Contra Almirante Custódio de Mello, mas ainda assim, não poderia ter ingressado sem passar pelos exames vestibulares. E acima de tudo, todas as Constituições republicanas vêm exigindo que oficiais de carreira das Forças Armadas sejam brasileiros natos. Por conseguinte, os candidatos a prestarem as provas vestibulares nas escolas de formação de oficiais, devem preencher essa condição sine qua non.
Assim sendo, tanto para ingressar na Academia Naval quanto para ser admitido no curso de maquinista oferecido pelo Arsenal da Marinha, o candidato teria que ser brasileiro. Como então, Otake teria sido admitido naquele curso?
No dia 14 de dezembro de 1889, o governo provisório da República promulgou o Decreto número 58-A, que dizia que são considerados cidadãos brasileiros todos os estrangeiros já residentes no país no dia 15 de novembro de 1889 e que tiverem residência durante dois anos desde a data daquele decreto, serão considerados brasileiros. E que os estrangeiros naturalizados por aquele decreto gozarão de todos os direitos civis e políticos dos cidadãos natos, podendo desempenhar todos os cargos públicos, exceto o de Chefe de Estado.
Supõe-se que o fato de Otake estar a bordo de belonave brasileira na data da Proclamação da República, foi considerado como se estivesse em território brasileiro, perfeitamente aceitável pelas regras domésticas e de Direito Internacional.
Não há qualquer registro quanto a admissão de Otake como aluno, tanto na Academia Naval, quanto no Arsenal da Marinha, com exceção do diploma de Maquinista de Quarta Classe acima mencionado, doado pela família ao Museu Histórico da Imigração Japonesa no Brasil, em 2007. Consta que todos os documentos sobre a sua permanência no Brasil teriam sido perdidos durante os bombardeiros aéreos contra a cidade de Tóquio, durante a Segunda Guerra Mundial.
Não se sabe exatamente do seu paradeiro nos anos seguintes ao término do curso no Arsenal da Marinha. Há quem diga na colônia japonesa no Brasil, de que teria participado da Revolta da Armada (1893-1894), em atenção ao seu benfeitor que o trouxe para o Brasil. De fato, o Contra Almirante Custódio de Mello, que era então o Ministro da Marinha e que assinou o seu diploma, renunciou ao cargo e chefiou a Revolta, logo dominada pelas forças governistas. O Contra Almirante e os demais oficiais se exilaram em Portugal até receber o indulto em 1895.
Otake voltou para o Japão em 1895, ano do término da guerra contra o Império chinês, que terminou com a vitória do Japão. A sua chegada após o final da guerra, despertou a desconfiança das autoridades, se a sua saída apressada para o Brasil não teria sido para fugir do serviço militar. Parece, contudo, que conseguiu explicar as razões de sua viagem e não houve maiores consequências.
Sabe-se que na viagem de ida não possuía passaporte, e não se sabe que documento teria usado na volta, pois a assinatura do Tratado de Amizade, Comércio e Navegação entre o Brasil e o Japão só ocorreria em 5 de novembro de 1895 e a abertura da legação japonesa no Brasil, somente em 1897. Assim, ele não poderia ter obtido o passaporte japonês para poder viajar. Eis a razão pela qual se cogita na possibilidade de Otake ter saído do país com passaporte brasileiro, já que ele seria considerado brasileiro para todos os efeitos, de acordo com o Decreto 58-A acima mencionado. Não há, contudo, registros sobre a emissão deste documento pelas autoridades brasileiras e nem a entrada de um brasileiro no Japão naquele ano, o que envolve a volta de Otake ao Japão numa nuvem de mistérios.
Tendo vivido 4 anos no Brasil, Otake seria a única pessoa no Japão com conhecimento da língua portuguesa do Brasil. A abertura da legação brasileira no Japão em termo de reciprocidade ocorreu em 1897 e Otake foi contratado como tradutor e intérprete. O primeiro chefe do posto a quem serviu foi o Ministro Henrique Carlos Ribeiro Lisboa. Trabalhou até 1942, quando houve a ruptura das relações diplomáticas entre os dois países em virtude da Segunda Guerra Mundial e consequente fechamento do posto, já promovido a categoria de Embaixada. Durante os anos em que trabalhou no posto, compilou os primeiros dicionários português-japonês (1918) e japonês-português (1925), obras de imensurável valor a muitos imigrantes que viajaram para o Brasil.
Com as mudanças ortográficas ocorridas na década de 1930, Otake publicou em 1937, o Novo Dicionário Português-Japonês, com 68.000 verbetes, num total de aproximadamente 100.000 palavras, prefaciado pelo então Embaixador Paulo Leão Velloso. Foi reimpresso em 1950 e 1971, por seu filho Shin´ichi Otake, que teria custeado as edições com recursos próprios. Apesar das diversas mudanças ortográficas ao longo dos últimos 70 anos, a sua consulta pode ser útil ainda hoje, pela riqueza de seu conteúdo, principalmente de palavras de uso exclusivo no Brasil. Além dos dicionários, Otake publicou os livros “Explanação da Gramática da Língua Portuguesa” (1925) e “Conversação nas Línguas Japonesa e Brasileira! (1927).
Otake faleceu em 23 de fevereiro de 1944, aos 71 anos de idade, e assim teve a fortuna de não tomar conhecimento da declaração formal de guerra do Brasil contra o Japão, ocorrida em 6 de junho de 1945, nem tampouco da rendição incondicional do Japão perante os aliados, incluindo o Brasil que seria, na verdade, o país de sua nacionalidade.