A Câmara de Comércio Brasileira no Japão envia boletim eletrônico aos associados mensalmente. Na edição de junho, o artigo foi escrito Pedro G. Seraphim (foto), sócio da área da Infraestrutura e Energia, da TozziniFreire Advogados. Ele analisou o setor elétrico brasileiro por causa da pandemia.
Setor Elétrico Brasileiro – o que esperar do futuro após a pandemia?
Por Pedro G. Seraphim
Sócio da Área de Infraestrutura e Energia de TozziniFreire Advogados
Muitos já sabiam que uma pandemia seria possível. Muitos também calculavam que o mix genético de um novo vírus poderia surgir na China, em seus mercados “vivos”. Mas poucos haviam pensado o tamanho do impacto que poderia ter nas vidas das pessoas, na economia e política dos países, e até nos relacionamentos internacionais.
Parece inegável que o estabelecimento de uma quarentena radical é o melhor caminho para controlar o alastramento do já célebre corona vírus. Entretanto, é também evidente que essa medida tem um profundo impacto adverso do ponto de vista econômico, pois afinal estabelecer uma quarentena é forçar uma relevante interrupção nos diversos setores. Poucos países preferiram uma abordagem mais branda para a quarentena, tentando privilegiar a proteção contra seus impactos econômicos, mas os fatos parecem demonstrar que essa não foi a melhor solução. A Suécia, por exemplo, já está admitindo como um erro o fato de não ter “fechado o país” logo que a crise começou.
O Brasil infelizmente tem que arcar com as consequências de uma disputa de visões diferentes entre governo federal, estados e municípios sobre qual a melhor política para se enfrentar a pandemia. Um país profundamente afetado pela desigualdade ainda espera um crescimento da contaminação e suas consequências. Enquanto vemos outros países já reabrindo suas portas, e portanto aparentemente já capazes de recomeçar a reconstrução pós quarentena, as estimativas mais otimistas para o Brasil (no momento em que este artigo é escrito) indicam que a pandemia irá alcançar seu pico não antes do início do mês de julho, sendo que o relaxamento da quarentena não deveria acontecer antes de meados de agosto. Entretanto, por aqui o inverno ainda está por chegar, e não seria uma grande surpresa se a meta de viabilidade segura para a abertura fosse jogada ainda mais para a frente. Nesse contexto, as previsões indicam (e a lógica também) que o PIB do Brasil sofrerá uma redução drástica neste ano.
Para o setor elétrico, a crise tem alguns efeitos imediatos, e outros que podem se refletir no longo prazo.
O nosso sistema de compra de energia pelas concessionárias de distribuição se dá através de leilões organizados pela agência reguladora do setor (Aneel), gerando contratos de longo prazo com as geradoras. Através dos leilões, busca-se disponibilizar às distribuidoras o fornecimento de energia nova baseada em suas próprias estimativas de crescimento de demanda para os próximos anos. Desde o início da quarentena, entretanto, com o fechamento da indústrias e prédios comerciais, observou-se redução relevante no consumo de energia elétrica, que chegou a alcançar a ordem de 20%. A redução de demanda, que se sobrepõe à redução já observada nesses longos 6 anos de crise econômica, fez com que a Aneel de imediato cancelasse dois leilões de energia nova marcados para o ano.
Como as distribuidoras são a principal porta de entrada de receita no setor, já que a maior parte do consumo nacional é vinculado a elas, a tarifa que elas cobram de seus consumidores (chamados de “cativos”) engloba parcelas de repasse para transmissoras e geradoras, além dos impostos e diversos encargos do setor. Para viabilizar a saúde financeira de toda essa cadeia diante da redução de consumo, a Aneel está organizando um empréstimo às distribuidoras que poderá alcançar R$16 bilhões. E para dar suporte às distribuidoras no serviço dessa dívida, a Aneel pretende criar um encargo adicional na tarifa, a chamada “Conta Covid”. Essa regra estava ainda sendo discutida e finalizada pela Aneel quando esse artigo foi escrito.
Pelo lado dos consumidores livres, aqueles que por algumas características regulatórias podem optar por comprar diretamente dos geradores a energia que precisam, e que o fazem através de contratos livremente negociados (não sujeitos a parâmetros regulatórios) temos visto um número crescente de renegociações e ações judiciais tentando impor aos geradores o direito de reduzir a conta de alguma forma. Tem sido comum encontrar agora pleitos alegando que a pandemia, como situação de força maior ou por causar uma onerosidade excessiva ao consumidor, deveria justificar uma redução dos custos associados ao contrato, especialmente através da redução do take-or-pay. Ainda não há uma clara tendência das decisões, no sentido de aceitar essa argumentação.
Nos primeiros meses da pandemia, com a queda na demanda, o preço spot de energia (conhecido como PLD – preço de liquidação de diferenças), determinado pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica – CCEE, conforme regras de oferta e demanda, caiu ao seu nível mínimo de aproximadamente R$40 no país inteiro. No entanto, já neste início de junho, o PLD, pelo menos na Região Sudeste, já alcança pouco mais de R$90, sinal de recuperação a se confirmar nos próximos meses, conforme seja determinado o relaxamento da quarentena.
De qualquer forma, ainda é impossível prever como será a recuperação da demanda de energia após o relaxamento dessa extensa quarentena. Os hábitos mudaram à força no início, mas agora muito da vida já se encontra adaptado às novas circunstâncias. O melhor exemplo é o home office, alvo de muito preconceito nas empresas, mas que, agora, parece ter vindo para ficar. Outra força na mesma direção é a insegurança quanto a uma segunda onda de pandemia. As pessoas deverão voltar de forma lenta a todas as suas atividades anteriores, mantendo ainda distância social. Sem contar os negócios que estão sofrendo tanto neste período que talvez não sobrevivam para ver o fim da quarentena, desde pequenos restaurantes até companhias aéreas. E assim o retorno da atividade econômica e, portanto, da demanda de energia, poderá ser muito mais lento do que o desejado.
Mesmo assim, a Aneel está se preparando para lançar regras que poderão criar novas oportunidades no setor elétrico, tais como o sistema de comercialização de lastro, uma forma de vender potência disponível (“capacity”), que virá com regras de modernização do setor elétrico. Da mesma forma, espera-se um crescimento nos próximos anos do número de usinas geradoras sem PPAs (sigla em inglês para “power purchase agreement”), que operarão total ou substancialmente no mercado spot, apoiadas também em política de ampliação do mercado livre através de um cronograma de redução dos patamares mínimos de consumo para definição de quais consumidores podem se tornar livres (ou seja, cessar a compra de energia das distribuidoras, escolhendo livremente seu fornecedor de energia). Antes, um consumidor só teria essa opção se houvesse um consumo mensal mínimo de 3MW em 69kV. A meta é essa liberdade chegar até ao consumidor residencial em alguns anos.
Pelo tamanho do território brasileiro, e pelo fato de termos um sistema interligado em nível nacional, espera-se que a pandemia não causará o cancelamento de leilões para novos projetos de transmissão. Afinal, independentemente da demanda, o sistema interligado precisa de redundâncias, modernizações e reforços para assegurar o fornecimento de energia por todo o território por ele coberto.
Da mesma forma, espera-se que os leilões para contratação de novos geradores deverão voltar logo. Os projetos levam anos para serem postos de pé, e assim que houver uma percepção de aumento de demanda, a Aneel terá que tornar possível novas contratações. Ao mesmo tempo, o governo está facilitando a inclusão de projetos de energia renovável entre aqueles que podem emitir debentures incentivadas (debentures de infraestrutura), o que deve impulsionar o mercado de “green bonds”.
Soma-se a esses fatores o desejo cada vez mais claro do governo de privatizar a usina nuclear Angra 3. Temos visto um grande interesse nesse projeto, que movimentará bilhões de reais. Sem falar na privatização da Eletrobrás, projeto que depende de lei específica no Poder Legislativo.
A pandemia pegou o Brasil no ano em que finalmente parecia que tudo ia favorecer a recuperação da economia e o desenvolvimento dos diversos projetos não só de energia, mas de várias áreas de infraestrutura. A pandemia representa, como dizemos por aqui, um banho de água fria nesse plano. Mas logo veremos o final da quarentena, e as diversas oportunidades vão surgir. Por mais que tenha seus defeitos, o atual governo federal tem pessoas capacitadas e preocupadas em atrair investimento estrangeiro através de uma agenda de projetos estável, de um sistema regulatório sólido, e com uma abordagem amigável ao mercado.
Assim, embora tudo esteja suspenso no momento, logo o Brasil voltará a produzir oportunidades para os investidores internacionais, especialmente os do Japão, que aqui já operam há mais de um século.